segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

O papel das peixeiras no século XXI

Texto de António Sousa Leite:

Antes de mais, devo dizer que discordo com o Nuno e o João no ponto em que pensam na plebe como doença, ou até de considerarem o plebeu um inútil. Na verdade, todos nós, nobres, clérigos, burgueses, novos-ricos (torna-se já, nos dias de hoje, mister distinguir entre os dois tipos de burguesia, este último perfeitamente plebeu), ou até plebeus, temos um papel importante na sociedade, à excepção da chamada “plebe de movimento” e, acima de tudo, do sub-grupo dos grunhos.

Da plebe, o grupo que mais necessário se torna à sociedade actual, é o das peixeiras, acima de todo (e não estou a querer ser bairrista), as do Norte do país, as de Matosinhos, Espinho, Afurada, mesmo o centro do Porto e tantos outros lugares que, olhando para o mar, se tornam intimamente pescadores e peixeiros. Não porque seja necessário comprar o peixe na rua, mas porque constituem uma deliciosa mistura de trajes, maneiras de ser, traços físicos, vocabulário, pronúncia e uma sociedade na qual estão habituadas a viver e a conviver desde muito crianças (ou, como dirão elas, canalha, o que, para nós, é apenas mais um termo para rasca, ralé), tão intimamente plebeus que lhes transmitem uma enorme graciosidade e, acima de tudo, transmitem alegria ao mundo, incluindo aos mais nobres senhores, a menos que sejam eles o alvo das “peixeiradas”.

Aquela figura, aquela mistura elegante de avental, canastra, meias de lã até sei lá onde, lavadas uma vez por semana, saia preta retalhada, rugas e, talvez transmitidos pela sua intima relação, desde tempos idos, com os pescadores, galochas e uma farta bigodaça. Esta figura é de uma beleza extrema, se bem que deva ser apreciada a certa distância, uma vez que perto o cheiro ao produto que lhes deu nome e que vendem desde tempos imemoriáveis pelas ruas do nosso país.

Mas o que as torna tão importantes ao mundo são sem dúvida as peixeiradas. Entre elas, estripam-se, esganam-se, arrancam cabelos, insultam-se, mas com aquela bela pronúncia nortenha que lhes tira a má-educação e as torna quase gracejos, estas acções que nos fazem rir e nos lembra que, acima de tudo, o Homem é um animal selvagem, e nem sempre racional.

Deliciam-me também os temas que as levam a tais manifestações externas dos sentimentos, que podem ser tão só o facto de discordarem quanto à melhor maneira de cozinhar pescada (evidentemente, e como estamos na plebe, não se discute o facto de as melhores partes serem a pele e parte preta do peixe, que são as únicas que verdadeiramente, e quanto a mim, infelizmente, sabem ao odor característico do rei das águas), solha, o peixe de uma ser melhor do que o da outra ou o verde tinto ter dado muito efeito. Aliás penso que, à semelhança do que nos Estados Unidos aconteceu com os Índios, também cá se deviam criar reservas de peixeiras, para não se perder tamanho património cultural. Acabo com uma expressão que é apenas um termo, tipicamente plebeia: “continuação”

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